Este debate não é novo, bem pelo contrário, repete-se ano após ano, a cada início de ano lectivo e sempre sem resultados significativos. Este ano procurei documentar-me, tendo para tal, recorrido a um estudo da Universidade do Minho, realizado num conselho do norte do país (convencionalmente designado Vila Formosa), que julgo retratar com alguma fidelidade a situação nacional. Embora o texto seja um pouco longo, vale a pena a sua leitura, pois permite-nos conhecer melhor a complexidade do sistema e a dificuldade em nele intervir. No referido trabalho pode ler-se:
O agrupamento dos alunos em turmas
“Se os pais (pelo menos alguns) procuram assegurar que os seus filhos são integrados na turma “certa”, a verdade é que, como nos referiu um dos dirigentes escolares entrevistados, “não são os pais que constituem as turmas”. Como se esclarece no ponto 5.1 do Desp. N.º 373/2002, de 23 de Abril, “Na constituição das turmas devem prevalecer critérios de natureza pedagógica definidos no projecto educativo da escola, competindo ao órgão de direcção executiva aplicá-los”, respeitando ainda as regras definidas pela administração educativa.
No que à constituição das turmas diz respeito, em Portugal as orientações da administração educativa raramente revestem uma natureza impositiva e tendem a ser relativamente genéricas, deixando, portanto, espaços para a auto-regulação, para a definição de orientações próprias que reflictam a(s) cultura(s) político-pedagógica(s) das escolas, incluindo os valores e concepções de justiça social que subscrevem.
No quadro de uma curta revisão da literatura sobre o impacto do modo de agrupamento dos alunos sobre as suas “aquisições” e “atitudes”, Duru-Bellat & Mingat (1997) sustentam que uma política orientada para a defesa do “interesse geral” deveria conduzir à opção pela promoção das classes heterogéneas dado que, nestas circunstâncias, “os alunos de nível inferior ao nível da sua turma ‘ganham’ muito mais do que ‘perdem’ os alunos situados acima do nível médio dos seus condiscípulos” (p. 787). Contudo, a promoção do “interesse geral” nem sempre é fácil de harmonizar com a satisfação dos interesses particulares dos distintos públicos escolares que pressionam os decisores no sentido de escolhas organizacionais que melhor respondam à sua busca de vantagens competitivas.
Em qualquer dos casos, se alunos com características iniciais idênticas progridem tanto melhor quanto mais elevado for o nível médio da turma que frequentam, então as práticas relativas ao(s) modo(s) de os agrupar adquirem uma nova centralidade e, portanto, uma parte da produção do sucesso/insucesso na escola também se concretiza pela forma como se administra esta vertente da gestão pedagógica, o que não deixará de ter consequências sobre a definição dos “destinos sociais” dos alunos.
Se, por um lado, dada a sua inserção geográfica e as condicionantes decorrentes da rede escolar negociada, as escolas “herdam” um determinado público escolar, por outro lado, o modo como arrumam os alunos do mesmo ano de escolaridade pelas diferentes turmas constitui, em grande medida, um campo de decisões escolares modelizáveis em função das doutrinas político-pedagógicas subscritas pelos órgãos a quem cabe definir e operacionalizar os princípios a que deve obedecer aquela arrumação.
No processo de agrupamento dos alunos por turmas (do mesmo ano) é conveniente distinguir três
situações básicas:
i) a constituição das turmas dos alunos que frequentam uma determinada escola pela primeira vez, normalmente iniciando um novo ciclo;
ii) a constituição das turmas no início do Secundário;
iii) e a constituição das turmas dos anos seguintes à primeira matrícula.
Dos três casos tipificados, é sobretudo nos dois primeiros que se abre espaço para a definição de novos arranjos que espelhem a filosofia própria de cada escola, nomeadamente no que concerne à questão da homogeneidade/heterogeneidade das turmas.
Uma análise global ao conjunto dos trechos das entrevistas em que os nossos entrevistados se reportam a aspectos relacionados com a constituição de turmas permite, num primeiro registo, pôr em evidência a aparente recusa das turmas de nível, pelo menos enquanto opções deliberadas da escola.
Contudo, este discurso da recusa das turmas homogéneas convive com uma rotina muito generalizada que, em muitos casos, anula a eficácia daquele discurso: o respeito pelo que “vem de trás”:
“As turmas... vêm para aqui em grupo, se a turma for boa a turma é boa, se a turma for complicada a turma é complicada.
[...], a turma é muito boa, sim senhor nós não tem problema nenhum em termos uma turma muito boa, óptima.” (E3)
Nesta circunstância, as escolas, mesmo quando não têm uma doutrina e/ou uma prática de constituição
de turmas de nível, podem efectivamente ter uma realidade caracterizada por turmas que evidenciam diferenças significativas de rendimento médio, simplesmente porque “herdaram” agrupamentos de alunos que, de forma relativamente acrítica, reproduzem ano após ano, como se não houvesse alternativa.
Noutros casos admite-se que, não constituindo o agrupamento dos alunos com base no seu desempenho académico uma prática generalizada, possa contudo ser um procedimento frequente para grupos específicos, ou seja, heterogeneidade para a maioria e algumas turmas “arranjadinhas”:
“Repare, o que a maior parte das escolas fazem é isso [constituir turmas mais ou menos heterogéneas], fazem as turmas assim e depois preocupam-se em fazer duas turmas ‘arranjadinhas’.” (E7)
Apesar de o princípio da continuidade, traduzido no “manter o que vem de trás”, constituir o procedimento dominante, também registámos um caso de uma “política” que aponta num sentido diametralmente oposto:
“…Aliás mantemos uma política das turmas também, de que nunca mantenho a turma do 9.º ano. Se vierem 15 alunos duma turma [de outra escola] para aqui, nós dividimos em dois blocos. Não queremos uma turma no 10.º ano que fique praticamente … Não, desfazemos os grupos, dividimos o grupo.” (E6)
No Ensino Secundário, a existência de turmas de nível pode ter raízes diferentes. A acção cumulativa da escolha do agrupamento, aliada à escolha das disciplinas de opção, contribui para uma certa homogeneidade intra-cursos e para o acentuar das diferenças inter-cursos. Contudo a elitização de certas turmas, dentro do mesmo agrupamento, pode ainda ser reforçada através da escolha das opções. Esta escolha, enquanto factor de selectividade, pode assumir dois tipos de configurações:
i) opções que dão acesso aos cursos mais procurados e em que, por isso, a procura ultrapassa a oferta, sendo a selecção feita com base nas notas;
ii) opções que são escolhidas não tanto porque dão acesso a cursos específicos, mas porque podem introduzir algum factor de distinção e facilitar a integração em turmas com um ethos académico mais acentuado.
O trecho seguinte dá conta da procura de distinção a que nos referimos antes:
“ […] No novo 10.º ano, este ano, sei que houve aqui uma turma, que acho que certas opções que fizeram são deliberadas, ou melhor, proporcionam certo tipo de turmas, no agrupamento de Ciências Sociais e Humanas, que é História a disciplina base: O que é que se depreende? Que os alunos fogem à Matemática [...] se há 1 grupo de alunos a escolher, neste agrupamento, Matemática aplicada às Ciências Sociais … de certeza que vamos ter duas turmas muito diferentes. […] Houve pais que pediram essa opção, e eu até falei com alguns alunos (…) são alunos que não estão a fugir … vai-lhes dar duas realidades completamente diferentes. […] Parto do princípio que são os pais que discutem esta opção com os seus filhos, são pais informados, sabem que com essa opção é uma turma para estudar, para aproveitar, e não é uma turma apenas para concluir o 11.º ano.”
Paralelamente, as escolas são por vezes sensíveis (frequentemente por boas razões) a um conjunto de “argumentações” invocadas pelos alunos e/ou encarregados de educação, anuindo aos seus pedidos para mudar de turma, o que em alguns casos constitui uma forma dissimulada daqueles “furarem” o sistema, reforçando a homogeneidade de certas turmas:
“…Se um filho dum professor é amigo dum outro filho de professor, é provável se calhar que até fiquem juntos, porque há sempre um grupo de alunos que processam o pedido para ficarem juntos.” (E2)
Efectivamente, se muitos destes pedidos são motivados pela necessidade de responder a algumas questões práticas, como por exemplo harmonizar horários de transporte, noutros (bastante difíceis de discernir) constituem estratégias dissimuladas de aceder às turmas “certas” contornando (e contrariando) os dispositivos e as políticas da própria escola.
Como consequência, e por acção do efeito cumulativo das várias escolhas, as turmas apresentam diferenças significativas de rendimento traduzidas nas boas e nas más turmas. Aparentemente, tais diferenças são associadas ao mérito individual, que a escola se limita a sancionar, ocultando-se que uma parte dessa “excelência” (bem como o insucesso dos excluídos) é fabricada (no sentido usado por Perrenoud, 1996) pela forma como se regula o acesso aos bens educativos e pelo modo como se operacionaliza esse acesso, com a própria instituição escolar a jogar também o seu papel, seja pelas decisões organizacionais que toma, seja por omissão, reproduzindo decisões alheias.”
Virgínio Sá e Fátima Antunes
O agrupamento dos alunos em turmas
“Se os pais (pelo menos alguns) procuram assegurar que os seus filhos são integrados na turma “certa”, a verdade é que, como nos referiu um dos dirigentes escolares entrevistados, “não são os pais que constituem as turmas”. Como se esclarece no ponto 5.1 do Desp. N.º 373/2002, de 23 de Abril, “Na constituição das turmas devem prevalecer critérios de natureza pedagógica definidos no projecto educativo da escola, competindo ao órgão de direcção executiva aplicá-los”, respeitando ainda as regras definidas pela administração educativa.
No que à constituição das turmas diz respeito, em Portugal as orientações da administração educativa raramente revestem uma natureza impositiva e tendem a ser relativamente genéricas, deixando, portanto, espaços para a auto-regulação, para a definição de orientações próprias que reflictam a(s) cultura(s) político-pedagógica(s) das escolas, incluindo os valores e concepções de justiça social que subscrevem.
No quadro de uma curta revisão da literatura sobre o impacto do modo de agrupamento dos alunos sobre as suas “aquisições” e “atitudes”, Duru-Bellat & Mingat (1997) sustentam que uma política orientada para a defesa do “interesse geral” deveria conduzir à opção pela promoção das classes heterogéneas dado que, nestas circunstâncias, “os alunos de nível inferior ao nível da sua turma ‘ganham’ muito mais do que ‘perdem’ os alunos situados acima do nível médio dos seus condiscípulos” (p. 787). Contudo, a promoção do “interesse geral” nem sempre é fácil de harmonizar com a satisfação dos interesses particulares dos distintos públicos escolares que pressionam os decisores no sentido de escolhas organizacionais que melhor respondam à sua busca de vantagens competitivas.
Em qualquer dos casos, se alunos com características iniciais idênticas progridem tanto melhor quanto mais elevado for o nível médio da turma que frequentam, então as práticas relativas ao(s) modo(s) de os agrupar adquirem uma nova centralidade e, portanto, uma parte da produção do sucesso/insucesso na escola também se concretiza pela forma como se administra esta vertente da gestão pedagógica, o que não deixará de ter consequências sobre a definição dos “destinos sociais” dos alunos.
Se, por um lado, dada a sua inserção geográfica e as condicionantes decorrentes da rede escolar negociada, as escolas “herdam” um determinado público escolar, por outro lado, o modo como arrumam os alunos do mesmo ano de escolaridade pelas diferentes turmas constitui, em grande medida, um campo de decisões escolares modelizáveis em função das doutrinas político-pedagógicas subscritas pelos órgãos a quem cabe definir e operacionalizar os princípios a que deve obedecer aquela arrumação.
No processo de agrupamento dos alunos por turmas (do mesmo ano) é conveniente distinguir três
situações básicas:
i) a constituição das turmas dos alunos que frequentam uma determinada escola pela primeira vez, normalmente iniciando um novo ciclo;
ii) a constituição das turmas no início do Secundário;
iii) e a constituição das turmas dos anos seguintes à primeira matrícula.
Dos três casos tipificados, é sobretudo nos dois primeiros que se abre espaço para a definição de novos arranjos que espelhem a filosofia própria de cada escola, nomeadamente no que concerne à questão da homogeneidade/heterogeneidade das turmas.
Uma análise global ao conjunto dos trechos das entrevistas em que os nossos entrevistados se reportam a aspectos relacionados com a constituição de turmas permite, num primeiro registo, pôr em evidência a aparente recusa das turmas de nível, pelo menos enquanto opções deliberadas da escola.
Contudo, este discurso da recusa das turmas homogéneas convive com uma rotina muito generalizada que, em muitos casos, anula a eficácia daquele discurso: o respeito pelo que “vem de trás”:
“As turmas... vêm para aqui em grupo, se a turma for boa a turma é boa, se a turma for complicada a turma é complicada.
[...], a turma é muito boa, sim senhor nós não tem problema nenhum em termos uma turma muito boa, óptima.” (E3)
Nesta circunstância, as escolas, mesmo quando não têm uma doutrina e/ou uma prática de constituição
de turmas de nível, podem efectivamente ter uma realidade caracterizada por turmas que evidenciam diferenças significativas de rendimento médio, simplesmente porque “herdaram” agrupamentos de alunos que, de forma relativamente acrítica, reproduzem ano após ano, como se não houvesse alternativa.
Noutros casos admite-se que, não constituindo o agrupamento dos alunos com base no seu desempenho académico uma prática generalizada, possa contudo ser um procedimento frequente para grupos específicos, ou seja, heterogeneidade para a maioria e algumas turmas “arranjadinhas”:
“Repare, o que a maior parte das escolas fazem é isso [constituir turmas mais ou menos heterogéneas], fazem as turmas assim e depois preocupam-se em fazer duas turmas ‘arranjadinhas’.” (E7)
Apesar de o princípio da continuidade, traduzido no “manter o que vem de trás”, constituir o procedimento dominante, também registámos um caso de uma “política” que aponta num sentido diametralmente oposto:
“…Aliás mantemos uma política das turmas também, de que nunca mantenho a turma do 9.º ano. Se vierem 15 alunos duma turma [de outra escola] para aqui, nós dividimos em dois blocos. Não queremos uma turma no 10.º ano que fique praticamente … Não, desfazemos os grupos, dividimos o grupo.” (E6)
No Ensino Secundário, a existência de turmas de nível pode ter raízes diferentes. A acção cumulativa da escolha do agrupamento, aliada à escolha das disciplinas de opção, contribui para uma certa homogeneidade intra-cursos e para o acentuar das diferenças inter-cursos. Contudo a elitização de certas turmas, dentro do mesmo agrupamento, pode ainda ser reforçada através da escolha das opções. Esta escolha, enquanto factor de selectividade, pode assumir dois tipos de configurações:
i) opções que dão acesso aos cursos mais procurados e em que, por isso, a procura ultrapassa a oferta, sendo a selecção feita com base nas notas;
ii) opções que são escolhidas não tanto porque dão acesso a cursos específicos, mas porque podem introduzir algum factor de distinção e facilitar a integração em turmas com um ethos académico mais acentuado.
O trecho seguinte dá conta da procura de distinção a que nos referimos antes:
“ […] No novo 10.º ano, este ano, sei que houve aqui uma turma, que acho que certas opções que fizeram são deliberadas, ou melhor, proporcionam certo tipo de turmas, no agrupamento de Ciências Sociais e Humanas, que é História a disciplina base: O que é que se depreende? Que os alunos fogem à Matemática [...] se há 1 grupo de alunos a escolher, neste agrupamento, Matemática aplicada às Ciências Sociais … de certeza que vamos ter duas turmas muito diferentes. […] Houve pais que pediram essa opção, e eu até falei com alguns alunos (…) são alunos que não estão a fugir … vai-lhes dar duas realidades completamente diferentes. […] Parto do princípio que são os pais que discutem esta opção com os seus filhos, são pais informados, sabem que com essa opção é uma turma para estudar, para aproveitar, e não é uma turma apenas para concluir o 11.º ano.”
Paralelamente, as escolas são por vezes sensíveis (frequentemente por boas razões) a um conjunto de “argumentações” invocadas pelos alunos e/ou encarregados de educação, anuindo aos seus pedidos para mudar de turma, o que em alguns casos constitui uma forma dissimulada daqueles “furarem” o sistema, reforçando a homogeneidade de certas turmas:
“…Se um filho dum professor é amigo dum outro filho de professor, é provável se calhar que até fiquem juntos, porque há sempre um grupo de alunos que processam o pedido para ficarem juntos.” (E2)
Efectivamente, se muitos destes pedidos são motivados pela necessidade de responder a algumas questões práticas, como por exemplo harmonizar horários de transporte, noutros (bastante difíceis de discernir) constituem estratégias dissimuladas de aceder às turmas “certas” contornando (e contrariando) os dispositivos e as políticas da própria escola.
Como consequência, e por acção do efeito cumulativo das várias escolhas, as turmas apresentam diferenças significativas de rendimento traduzidas nas boas e nas más turmas. Aparentemente, tais diferenças são associadas ao mérito individual, que a escola se limita a sancionar, ocultando-se que uma parte dessa “excelência” (bem como o insucesso dos excluídos) é fabricada (no sentido usado por Perrenoud, 1996) pela forma como se regula o acesso aos bens educativos e pelo modo como se operacionaliza esse acesso, com a própria instituição escolar a jogar também o seu papel, seja pelas decisões organizacionais que toma, seja por omissão, reproduzindo decisões alheias.”
Virgínio Sá e Fátima Antunes
Investigadores do IEP da Universidade do Minho
Sem comentários:
Enviar um comentário